Quando falamos de trauma é importante diferenciar dois tipos distintos de eventos que podem causá-lo: eventos únicos e de grande dimensão (os grandes T) que nos colocam em risco de vida – como um acidente de viação, um assalto ou abuso sexual; eventos mais subtis que se repetem sistematicamente ao longo da nossa vida (os pequenos T) que colocam em risco outras necessidades básicas – como um historial de negligência ou falta de apoio emocional na infância. O presente artigo irá focar-se sobretudo no primeiro tipo de eventos, uma vez que são estes que, muitas vezes, originam os sintomas de Stress Pós-Traumático (SPT).
O trauma pode ser definido como a exposição a um evento (direta ou indiretamente) que nos coloca em risco de vida e causa uma resposta emocional de medo e impotência. O trauma (provocado pelos grandes T) instala-se quando vivemos ou testemunhamos uma situação de ameaça de morte, lesão grave ou abuso sexual. Mas é preciso considerar que mais do que o evento em si, o trauma depende do efeito que este evento tem na pessoa: o que é traumatizante para uma pessoa pode não o ser para outra. Nem todas as pessoas desenvolvem SPT depois de passarem por um acidente de viação ou experienciarem uma catástrofe natural, o que significa que o trauma não depende apenas do que acontece de facto, mas sim da forma como a pessoa reage ao mesmo. Ao sermos expostos a situações traumáticas, o nosso corpo produz reações fisiológicas de stress que dão origem a uma panóplia de alterações biológicas, que se poderão traduzir em perturbação mental. Assim, um acontecimento é traumático quando sentimos que os recursos de que dispomos não são suficientes para fazer face à situação por que estamos a passar: este desequilíbrio gera uma resposta de stress fisiológico e psicológico intenso e o trauma ocorre.
As reações individuais dependem de inúmeros fatores, nomeadamente internos (sensibilidade do sistema nervoso ao stress, história de vida, mecanismos de coping, etc.) e externos (imprevisibilidade do acontecimento, apoio social, recursos socioeconómicos, etc.).
Ainda a salientar neste conceito de trauma é o facto de que este pode ocorrer de forma vicariante, ou seja, pessoas que tenham testemunhado o trauma, que saibam que alguém próximo de si passou por uma experiência traumática ou que estejam expostas sucessivamente a detalhes de eventos traumáticos como consequência do seu trabalho (p.e. socorristas, médicos, psicólogos) também podem desenvolver quadros de SPT.
As vivências traumáticas têm um impacto profundo na pessoa que por elas passa, pondo em causa as crenças das pessoas em relação a si próprias, aos outros e ao mundo: há perda da sensação de segurança, de confiança nos outros e até de identidade. O trauma causa feridas profundas.
Sintomas do Stress Pós-Traumático
O SPT é uma das perturbações que se pode desenvolver como resultado de uma vivência traumática, ocorrendo em 5% a 10% da população geral. Em populações que vivem em zonas afetadas por conflitos a prevalência é maior e esta taxa pode chegar aos 15%. O SPT é uma condição heterogénea, podendo ter apresentações muito diversificadas que vão desde prejuízos cognitivos, dificuldades no controlo de impulsos, sintomas psicóticos, afetivos ou de humor, assim como mudanças no ritmo circadiano e neuroendócrinas.
É importante ter em conta que é natural e adaptativo que nos primeiros tempos após um acontecimento traumático, as pessoas possam ter reações de stress que são fora do comum para si. Estas reações são parte do processo de adaptação e devem ser compreendidas, sendo que na grande maioria das vezes acabam por diminuir de intensidade com o passar do tempo: são reações normais a situações anormais. Caso os sintomas persistam e se agravem, poderemos estar perante o desenvolvimento de um quadro psicopatológico.
A Perturbação de Stress Pós-Traumático inclui sintomas de vários tipos, que são explicitados sucintamente de seguida:
- Re-experienciação: sintomas como memórias intrusivas, recorrentes e involuntárias do acontecimento traumático; sonhos angustiantes e recorrentes em que o conteúdo ou as emoções estão relacionados com o evento; reações dissociativas, em que a pessoa age como se o acontecimento estivesse a ocorrer novamente; sofrimento psicológico intenso e prolongado e/ou reações fisiológicas na presença de estímulos que recordem o acontecimento traumático (sendo que estes estímulos nem sempre são percecionados conscientemente).
- Evitamento: evitar recordações, pensamentos ou sentimentos associados ao evento traumático. A pessoa pode esforçar-se para evitar estímulos externos que estejam associados ao evento traumático (p.e. locais, pessoas, objetos, atividades) e/ou internos, esforçando-se para não pensar ou sentir nada que esteja relacionado com o acontecimento (evitamento experiencial).
- Alterações negativas no humor e cognição: sintomas como incapacidade de recordar aspetos importantes do evento; pensamentos distorcidos que causam culpa exagerada ou expectativas negativas em relação a si, aos outros ou ao mundo; estado emocional negativo e persistente (p.e. medo, raiva, vergonha) e incapacidade de sentir emoções positivas; diminuição do interesse em atividades anteriormente prazerosas (anedonia); sensação de distanciamento e alienação dos outros.
- Alterações na reatividade: sintomas como comportamento agressivo e surtos de raiva (com pouca ou nenhuma provocação); problemas de concentração ou sono; hipervigilância; comportamento impulsivo ou autodestrutivo; respostas de sobressalto exageradas.
- É também possível que existam sintomas dissociativos, nomeadamente despersonalização ou desrealização. A despersonalização diz respeito a uma sensação de se sentir separado do corpo, como se fosse um observador externo (pode traduzir-se na sensação de estar a viver um sonho, por exemplo). A desrealização diz respeito a experienciar o ambiente envolvente com sensações de irrealidade (ter a sensação de que o mundo não é real ou está muito distante, por exemplo).
Estes sintomas desenvolvem-se geralmente entre 1 a 3 meses após o acontecimento traumático (quando os sintomas estão presentes antes do primeiro mês, considera-se que estamos perante uma Perturbação Aguda de Stress). No entanto, é possível também que os sintomas se desenvolvam passados 6 meses ou mais após o evento, sendo que nesse caso estamos perante uma Perturbação Tardia de Stress Pós-Traumático.
Fatores de risco no Stress Pós-Traumático
Nem todas as pessoas desenvolvem SPT após a exposição a uma situação potencialmente traumática e a investigação indica que os fatores biológicos e psicossociais têm influência sobre a evolução da resposta de stress. O impacto do acontecimento depende das características da experiência em si, da pessoa que passa pela exposição traumática e dos recursos a que tem acesso após a mesma.
Assim sendo, os fatores de risco podem dividir-se em três categorias: pré-incidente (características pessoais e história de vida); peri-incidente (características do evento); pós-incidente (experiência após o incidente).
Fatores pré-incidente:
- Historial de psicopatologia;
- Luto não resolvido;
- Experiência prévia de eventos traumáticos;
- Pouco apoio social;
- Ser parte de uma minoria étnica;
- Morte de um progenitor na infância;
- Estratégias de coping desadaptativas;
- Determinados traços de personalidade;
- Género feminino.
Fatores peri-incidente:
- Ameaça real ou percebida;
- Imprevisibilidade e incontrolabilidade dos acontecimentos;
- Exposição a destruição massiva, guerra, trauma físico ou cadáveres;
- Dissociação ou desrealização peri-traumática;
- Evento provocado pelo Homem.
Fatores pós-incidente:
- Pouco apoio emocional e social ou exigências sociais elevadas;
- Pouca informação acerca do acontecimento (da sua natureza ou das razões);
- Stressores contínuos (fome, frio, desalojamento, por exemplo);
- Estratégias de coping desadequadas (como culpabilização, evitamento ou consumo de substâncias);
- Falta de apoio de follow-up.
Estes fatores de risco têm um impacto negativo nas reações de stress, dificultando uma resolução natural das dificuldades e a adaptação após a exposição traumática. Como tal, podem contribuir para a manutenção e agravamento dos sintomas o consequente desenvolvimento de SPT.
Como promover a resiliência após a exposição traumática?
Após a exposição traumática, grande parte das pessoas recupera sem consequências mentais graves: estima-se que 2 em cada 3 recuperem sem consequências a longo prazo. Mas existem também algumas ações que podem ser tomadas no sentido de promover a resiliência de quem foi exposto a eventos traumáticos.
Resiliência é a capacidade de recuperação e superação de adversidades, a nível psicológico, emocional e físico. Ser resiliente não significa que não existam problemas ou dificuldades, mas sim que apesar de tudo mantemos a capacidade de ser saudáveis, mesmo face a adversidades. A resiliência pode ser promovida a nível individual e comunitário, procurando ligar as pessoas aos recursos existentes que tem para lidar com as dificuldades.
Assim, algumas intervenções de primeira linha para promover a resiliência após a exposição traumática, são:
- Informar adequadamente sobre o que se passou e o que se vai passar num futuro próximo (qual a natureza do incidente e as medidas que estão a ser tomadas);
- Informar sobre as reações normais de stress;
- Assegurar alimentação e sono regulares;
- Ensinar estratégias de relaxamento (para diminuir a ativação fisiológica);
- Conectar com as redes de suporte social (família, amigos, p.e.);
- Ativar estratégias e recursos coletivos e individuais (como associações, comunidades, etc.);
- Descatastrofizar e ajudar a pensar no futuro (ajudar as pessoas a encontrar soluções para a situação atual);
- Empoderamento (salientar os aspetos em que os indivíduos/comunidades têm controlo, dar voz às suas preocupações e opiniões e ajudar a encontrar soluções);
- Criar uma sensação de segurança, autoeficácia e esperança na comunidade.
É de salientar, especialmente, a grande importância do apoio social após a exposição traumática. Este é um dos principais pilares de saúde mental e a investigação demonstra que pessoas com menos apoio social apresentam trajetórias menos resilientes, têm maior risco de desenvolver SPT e menos probabilidades de recuperar desta perturbação.
Co-morbilidades no Stress Pós-Traumático
É bastante comum que uma pessoa que sofra de SPT apresente também outras perturbações co-mórbidas, algo que acontece em cerca de 80% dos casos. Assim, a co-morbilidade é a regra e não a exceção, algo que se deve ao facto de os eventos traumáticos causarem alterações profundas a nível somático, cognitivo, afetivo e comportamental. Em relação às co-morbilidades psiquiátricas, as mais prevalentes são referidas de seguida:
- Perturbações de ansiedade: as perturbações de ansiedade são mais comuns em pessoas que sofrem de SPT, sendo 2 a 4 vezes mais provável que desenvolvam algum destes tipos de problemática do que a população sem SPT.
- Perturbações afetivas: as pessoas com SPT têm uma probabilidade 2 a 3 vezes superior a desenvolver uma perturbação afetiva do que pessoas sem SPT. Nas perturbações afetivas co-mórbidas mais comuns incluem-se a Depressão Major, a Distimia e a Mania.
- Perturbação de abuso de substâncias: perturbações por uso de álcool e drogas são 2 a 3 vezes mais comuns em pessoas com SPT, em comparação com pessoas sem SPT.
- Perturbações dissociativas: os sintomas dissociativos (como flashbacks) fazem parte do SPT, no entanto, é possível que se desenvolvam perturbações dissociativas em paralelo (como a amnésia dissociativa). As perturbações dissociativas desenvolvem-se sobretudo em casos em que o trauma ocorreu na infância.
- Esquizofrenia: existe uma prevalência elevada de pessoas com SPT entre aquelas que têm um diagnóstico de esquizofrenia, apesar de muitas vezes não ser reconhecido nem diagnosticado. Esta co-ocorrência pode traduzir-se em taxas maiores de pensamentos suicidas e comportamentos suicidários.
O facto de o SPT ser comummente acompanhado de outras perturbações, em que por vezes os sintomas são semelhantes, pode dificultar o diagnóstico. Como tal, é importante ter em conta que a exposição a eventos traumáticos pode contribuir para o agravamento de outras situações co-mórbidas e, consequentemente, o plano terapêutico deve ter um foco no trauma.
Além destas perturbações, o SPT causa sofrimento e incapacidade que se traduz numa série de outras dificuldades que diminuem o bem-estar. Nomeadamente, problemas relacionados com o trabalho, queixas somáticas (i.e. físicas), imagem corporal negativa, prejuízo social e dificuldades na intimidade são algumas das disfunções que quem sofre com SPT muitas vezes se debate.
A exposição traumática tem também um forte impacto fisiológico devido às alterações produzidas em reação ao stress. Como tal, a investigação tem demonstrado que as pessoas com SPT apresentam alterações nos circuitos dos sistemas endócrino e imunitário e estão em maior risco de desenvolver doenças crónicas. Nomeadamente, as doenças físicas que mais comummente são co-mórbidas com SPT são doenças cardiovasculares, asma, hipertensão, diabetes e artrite, assim como dor crónica.
Além do mais, o SPT está também associado a autorrelatos de pior saúde física. Deste modo, compreende-se que o SPT não só tem impacto a nível psicológico, mas também acarreta maior risco para o desenvolvimento da doença física, aumentando o sofrimento de quem sofre desta perturbação.
Tratamento do Stress Pós-Traumático
Quando é desenvolvido um quadro de SPT, o sofrimento experienciado pela pessoa torna-se bastante intenso e é recomendado o acompanhamento psicológico e, eventualmente, psiquiátrico. O SPT traz consigo perdas secundárias dos mais diversos tipos, diminuindo a qualidade de vida de quem dele sofre. Quanto maior a duração do quadro, maiores serão estas perdas pelo que o tratamento adequado é vital para a melhoria dos sintomas e da qualidade de vida.
A psicoterapia é recomendada pela Organização Mundial de Saúde como o tratamento de primeira linha para o SPT, sendo que o recurso a medicação apenas deve ser feito se a psicoterapia (focada no trauma e/ou na gestão de stress) não surtiu efeito ou caso haja simultaneamente um quadro de depressão moderada a severa.
Atualmente, os tipos de psicoterapia que mostram maior eficácia no tratamento de SPT são a terapia cognitivo-comportamental focada no trauma e a terapia EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing).
A psicoterapia cognitivo-comportamental focada no trauma pretende ensinar à pessoa competências que lhe permitam questionar e mudar os pensamentos e comportamentos desadaptativos, resultantes da exposição traumática, para que estes se tornem mais saudáveis, úteis ou produtivos. Este tipo de intervenções foca-se nas crenças e comportamentos da pessoa através da exposição prolongada (às situações geradoras de ansiedade), do desafio de crenças e da reconstrução de narrativas, por exemplo. Como consequência da reestruturação cognitiva e da aquisição de novas estratégias, os sintomas diminuem e o bem-estar aumenta.
A psicoterapia EMDR surgiu no final dos anos 80 e tem demonstrado ser eficaz na redução de sintomas de SPT. Este tipo de terapia foca-se no processamento espontâneo de memórias utilizando simultaneamente estimulação bilateral (i.e. estimulando os dois hemisférios cerebrais através de estímulos visuais, sonoros ou táteis). O processamento decorre a partir da evocação da memória do evento traumático, sendo realizada a estimulação bilateral para potenciar um processamento mais adaptativo da informação e ajudar a diminuir o sofrimento associado àquela. Ao contrário da terapia cognitivo-comportamental focada no trauma, o EMDR não implica a descrição detalhada dos acontecimentos traumáticos, não procura desafiar as crenças da pessoa, nem utiliza a exposição a estímulos/gatilhos (apesar de a pessoa poder ser encorajada a fazê-lo após a redução dos sintomas).
Intervenções focadas na gestão do stress também demonstram ter alguma eficácia. Este tipo de intervenções não se foca diretamente no evento traumático, mas sim na aquisição de estratégias que permitam regular os níveis de ansiedade. Assim, estas intervenções baseiam-se na prática de estratégias de relaxamento ou treino de inoculação do stress, por exemplo, e não na reestruturação da narrativa do trauma.